sexta-feira, 15 de agosto de 2008

DÉCIMO SÉTIMO ANDAR: MATESO, OPUS 3

Um jantar
Mam’selle “poulette à la crème rouge” retorcia-se na travessa aquecida. Rodeavam-na pequenas batatinhas salpicadas e espargos gratinados. A cor dourada, o vermelho, mais o verde, davam-lhe aquele ar apetitoso que faz a saliva brotar sob a língua. As batatinhas estremeciam aos pontapés dos cotos bem tostadinhos. Os espargos, moles por natureza, nem despegavam do seu sítio. Sabiam-se inexcedíveis ao toque e gostosos no degustar. Para quê incomodarem-se? Que a comum da poulette fizesse algazarra, estava-lhe na capoeira do sangue. E no pequeno elevador, da cozinha para a copa, que antecedia a enorme sala de jantar, lá subiram eles aos solavancos, porque o dito cujo, estava assim, a modos que, enferrujado dada a falta de uso. Não é todos os dias que se servem jantares para tantos convivas.” La poulette” de peito bem recheado a lembrar o colo alto e anafado de uma prima-dona, motivada pela sua magistral beleza gastronómica, passa invejável por entre os dedos que lhe suportam o leito, melhor a travessa onde repousava lânguida e tostada. O sacolejar fazia-a sentir-se ligeiramente suada, porém, assim que respirou um pouco do ar de múltiplos odores, sentiu-se logo fresca e apetitosa. Depois é “très chic” subir de elevador até ao primeiro andar, embora estivesse um pouco demodé, mas também quem é que sabia? As outras primas poulettes que se perfilavam na mesa ordenadas de acordo com o estrato social, sentiam, também, aquele frenesim que precede a expectativa, pois que, tal como ela, iriam subir pelo velho elevador para logo serem levadas pelos criados de libré. Um desfile digno de registo. Recorda, a cozinha bem atarefada de mesa comprida, panelas luzidias, fogão crepitante e facas, muitas, compridas, largas e afiadas. Depois Tia Rosinha gorda, gordinha de grande avental branco e chapéu pregueado, redondo e alvo. O olhar de manteiga, braços de derriço, as mãos de artista que de uma simples poulette da capoeira fazia a melhor iguaria digna de honrar a mesa dos “Messieurs de Souzelas.” Mas, mais ainda do que a cozinha, ela “la poulette à la crème rouge” recordava-se sobretudo do misto de sentimentos que a alagara, ao saber, que iria viajar no velho elevador da cozinha até à copa. Havia anos que o pobre fora esquecido, pois que a cozinha passara a ser quase museu de tachos e panelões lustrosos de cobre pendurados. Um espaço novo e moderno fora instalado no andar de cima, passando a velha cozinha para as calendas gregas. Porém, naquela mesmíssima noite, a tradição tomara o seu lugar há já muito perdido, e começando pela antiga cozinha e respectivo elevador, tudo se pusera a funcionar com uma quase perfeição de locomotiva bem oleada. Porque isto é assim, casa que se preze tem elevador da cozinha para a copa e vice-versa. Os criados, criaturas de Deus, há muito que se tinham desabituado, de acordo com a evolução da espécie, das subidas e descidas até ao primeiro andar. Fora pois, lá pelos idos de 1889 que D. Antão de Souzelas mandara instalar o elevador, não para evitar o esmoer físico dos seus retesados serviçais, mas antes, pelo simples facto, de detestar comida fria, e não havendo outro modo de a conservar bem quente, senão por este processo, dada a lonjura da cozinha para a sala de jantar, aquiescera na compra e instalação de tão moderno artefacto. Não fora a excessiva elaboração de um brasão esmaltado que roubava toda a atenção, senão alento, aos que chegavam de novo, relegando para segundo plano, o “dernier cri” do casarão. Não fora por este excesso, a preciosidade mecânica teria tido toda a admiração própria dos pacóvios de província, por sinal dignos frequentadores dos salões da casa. Bem instalado no vão das escadarias que circulavam entre a cozinha e o nobre primeiro andar, o elevador desaguava numa copa bem guarnecida de serviços de vidros, baixelas e demais parafernália, ligando por meio de um arco abobadado, vestido de pesados reposteiros de veludo mel, ao digníssimo salão de degustação, alegoricamente decorado de tapeçarias e pinturas de mestres. Mas, retomando o nosso elevador, nosso como quem diz, de “Mam’selle la poulette à la crème rouge,” que por aquelas alturas já ocupara o lugar central numa simetria perfeita, na grande mesa coberta de alvo linho. Varria-a uma excitação, era uma viagem única, quase uma aventura da cozinha para a copa. Entre o sacolejar, vai que não vai de uma subida, um arredondar de ruídos, um afogar de guinchos, um retesar de cabos e finalmente uma paragem brusca, eis que chegou ao destino. Abriu-se a portinhola de madeira e mãos enluvadas retiraram a bela da travessa totalmente decorada ao claro gosto da sábia Tia Rosinha A arte nascia-lhe sob os dedos assim que pressentia repastos fidalgos, e hoje as cores tinham-se vestido de verde e vermelho numa orgia de odores apetecíveis. Mam’selle sentia-se inchada, não se percebia se era da forma, se antes da importância, que lhe servia de mote. Assim ufana, revestida de uma vaidade dourada como o tostado da sua pele, a galinha passa em revista todas as outras frangas que se dispunham pela mesa. A mania das importâncias que lhe pulsava sob a pele estaladiça tornava-a semelhante a uma daquelas tias de nariz empertigado, voz rouca e cérebro quase vazio, mas de aparência fabulosa, assim era Mam’selle la poulette. À excitação da subida juntava-se-lhe o orgulho tolo da importância. Sentia-se tão magnífica que se esquecera que em breve seria trinchada, fatiada, mastigada e engolida. Depois cairia no esquecimento. Mas que importava isso. Feliz, Mam’selle suspirava regozijada. Depois dos preliminares comuns ao cerimonial de uma refeição de libré, a sua vez chegou. Não tugiu nem mugiu, apenas se sentiu esvaziada de carnes, delapidada de articulações, enfim comida. Saciados os humores estomacais dos ilustríssimos convivas, de novo as librés inclinaram-se recolhendo as vitualhas, que em forma de ossos pululavam as travessas. Despidas de encanto, com um ar bastante descomposto, aqueles mais os restos de todas as poulettes, desceram da copa para a cozinha no velho elevador que cansado resfolegava na descida. O dia fora-lhe pesado, e nem o óleo nas juntas lhe mitigavam o esfalfamento daquele dia. As mazelas da idade se bem que disfarçadas, chegada a hora da verdade rangiam por tudo quanto era sitio, no caso, em tudo que era porca, roldana ou cabo. Os criados exaustos retiravam as travessas descuidadamente do cubículo, e despejavam os restos num grande panelão. Entre os sobejos da travessa maior, uma pele tisnada sobressaía, colada ao fundo, como se a pobre tivesse deixado incólume o invólucro para futuras receitas de tisnado. Um guia culinário digno de uma escrita à la mode como é de praxe nestas andanças.
E assim findou um jantar de poulettes e um velho elevador que embora caquéctico ainda cumpriu as suas funções. Na vida fugaz de todos nós, um pouco de óleo e de pele tisnada, por vezes, são capas coloridas de belas recordações!....

assina: Maria Teresa de mateso