domingo, 21 de setembro de 2008

VIGÉSIMO SEGUNDO ANDAR: XruiM


Dingdong... BomdiaSenhorEngenheiro.
DonaMárciacomoestá. Paraoátrionãoéverdade?...

E desce, desce, como desce bem o senhor engenheiro. Desce tão bem que parece que sobe, ali para cima donde pouco se deve ver. Será que vê a Márcia por debaixo do seu penteado de dona? E naqueles olhos? Verá a limpidez de uma tristeza funda? Não pode. São presos ao chão aqueles olhos. Pálpebras de chumbo. Só debaixo se pode ver a centelha de quem esquece que entristeceu. Todos os dias vai esquecendo, um pouco. Ali ao lado do senhor engenheiro. De lado...

Dingdong... DonaMárcia.
TenhaumbomdiaSenhorEngenheiro...

BomdiaSenhor... Sétimoandar?comcerteza...
Siménosétimo.
Àesquerdaaofundodocorredorencontraráarecepção...
Aoseudispor...

E sobe, sobe, ao seu dispor sobe. Gente nova esta que diz bom dia a sorrir. É fácil acreditar que vamos ter um bom dia quando nos é desejado assim com um sorriso claro. É um timbre de voz que nos faz cruzar o olhar e perceber que há presenças serenamente ingénuas. É o optimismo de quem pouco sabe e tudo espera, sem saber que tudo é mesmo tudo, incluindo o que não se espera, sem saber que a espera de mais nada esperar é uma imensa folha branca que nunca ficará preenchida. Que aprenda ele a usar o lado certo da caneta...

Dingdong... TenhaumbomdiaSenhor...
Simàesquerdaeaofundo.

Bom dia Alzira. Já acabaste por hoje?... Não Alzira, ainda não chegou... Não sei Alzira... Sim, mas... Que ideia mais disparatada Alzira!... Sim Alzira acho que não deves...
Dingdong... Até amanhã Alzira. Tem um bom dia.

BomdiameninaVera... Nãovaiparonono?!...
Paraosolário?comcertezameninaVera...
Nãoaindanãoconheçooseuamigo... MeninoTonelo...

Sobe, sobe. Sobe rápido que a pressa é muita. Já não lembrava de quanta pressa se pode ter. Aqui atrás o mundo está prestes a acabar e eles nem sabem que acabará mesmo, só que muito mais devagar. Será inveja?... Saudade. Sim, saudade daquela luz imensa que de dentro ilumina o mundo e ele, assim iluminado, nos parece tão mais perto, tão leve e pequeno...

Hrummhrumm...

Sobe, sobe. Sobe lá. E que lento podes ser quando levas gente a mais. Sinto-me sempre a mais na presença de quem tem o mundo na mão. Fazê-lo rodar e olha-lo dos pontos de vista mais improváveis. Soprar a espuma nas ondas do mar, sentir leve o ondular antes da baixa-mar. Antes de o mundo secar, maior e pesado. Antes que longe fique o mar...

Dingdong... TenhaumbomdiameninaVera... MeninoTonelo...

A chamar da cave 10!?... A cave 10, há quanto tempo lá não vou!... Duas... três vezes, nestes anos todos... não sei bem. Não...

Dingdong... BomdiaSenhorAlberto. Esperequeeuajudo.
Estacionamentonãoé?cave1.

Desce, desce. Não vai descer muito mais o senhor Alberto. Há sempre vidas corridas a descer, muito rápidas e sempre a descer. Terá algum dia olhado para cima? Custa a crer que se faça tão grande caminho sem nunca olhar para cima. Talvez não saiba que existe cima. Talvez não se aperceba que no olho do vórtice arrastam-se os companheiros de viagem... Dor maior aquela de o perceber...

Dingdong... Deixemeajudaloatéaocarro. Não?..
ComcertezaSenhorAlberto. Folgomuitoemverlorecuperado.
TenhaumbomdiaSenhorAlberto.

Vamos lá, cave 10. Não me lembro mesmo... Terão sido só duas vezes que lá fui?... Amarelo pardo nas paredes, luz parda, pouca e incandescente... A maquinaria de bombagem ao fundo à direita... À esquerda faltavam lâmpadas e era escuro... e isso foi daquela vez.
Só lá terei ido daquela vez?!...

Dingdong... Olámenino. Quefazomeninoaquiembaixo?...
Agência espacial!? Não menino, esta é a cave 10 e a última do edifício, não é nenhuma agência espacial!... Como se chama o menino?... Muito bem, Tomás, o menino está sozinho?... Sim, vamos para cima, mas para o átrio onde iremos telefonar aos seus pais... Ao seu avô?... Muito bem, telefonaremos ao seu avô. Agora vamos para dentro.
Sim, pode carregar nos botões... Primeiro neste... Escotilhas?... Enfim, poderemos dizer fechámos as escotilhas. Agora este com o zero... Muito bem...
Não, esse não é o botão de ignição, esse acciona o alarme... 9
Mais ou menos... É para nos ouvirem quando alguma coisa corre mal... 8
Exacto, esse vermelho é para parar... 7
A missão?! Está bem, esse abortará a missão se algo correr mal... 6
Não menino, não vamos abortar a missão... 5
Sim menino, tenho a certeza... 4
Medo?!.. 3
Sim tenho um pouco... 2
Sim, posso chamar-lhe Tom... 1
Sim senhor, Major Tom... 0
Naquele dia abriram-se as portas do elevador, vazio e onde se ouviam já longínquos os últimos acordes de 'Space Oddity'.

XruiM em X peliO
21 de Setembro 2008