quinta-feira, 31 de julho de 2008

DÉCIMO PRIMEIRO ANDAR: MATESO, OPUS 2

O Ascensorista
Joe, negro, sessenta anos, vestidos de verde-garrafa e amarelos polidos perfila-se junto ao elevador. O número um, o da ala central. Inclina-se ligeiramente, puxa a porta, abrindo-a ao mesmo tempo que sorri calorosamente. Murmura num timbre quente e arrastado de sulista:
-Bom dia Mr. Owens. It is a good day, isn’t it?
-Bom dia Joe. It seems so, indeed.
É um espectáculo de elegância o velho Joe. Sempre erecto, engomado, irrepreensível. Na tez cor de chocolate as rugas pregueiam-se horizontalmente na simetria dos seus trejeitos. O vinco das calças acompanha a elegância das longas pernas, que terminam nuns pés calçados de preto brilhante. O boné, onde as dragonas em ouro velho sobressaem, dá-lhe aquele ar chic dos anos quarenta em filme da MGM. A sua destreza no abrir e fechar de porta, bem como a sua natural bonomia e sorriso tornaram-no uma referência, no foyer, deste edifício imenso de trinta andares, mesmo no coração de Manhattan. Os mármores negros que revestem dois terços do imenso átrio, os metais amarelos reluzentes, as plantas verdes, brilhantes e profusas, o vidro que enobrece de luz a parte frontal da entrada, a par de um suave meddley na voz de Frank Sinatra, acrescente-se a frescura, ou amenidade, de acordo com a estação do ano, fazem deste lugar, o eleito de Joe Bellow. Hoje é o seu último dia. O elevador número um, o principal, aquele que ele viu nascer e crescer passará para outras mãos. Tem pena, mas a idade não lhe perdoa. A artrite já lhe tolhe os gestos. O esforço por vezes é doloroso, não o demonstra, mas depois em casa é a sua Mabel que lhe alivia as dores com as pomadas, mais as massagens. Chegou o dia que ele temia. Não deixa transparecer a solidão que já pressente. Ninguém parece saber que é o seu adeus. Entra no ascensor. Mr. Owens e Mr. Sutton vão para o décimo, Mrs Trevor para o décimo segundo, Mr. Parker para o décimo sete, Miss Page para o vigésimo, os outros dois cavalheiros, asiáticos por sinal, não sabe, terá que lhes inquirir. O espaço está completo. Entra, prime os botões. Sorri afável. Depois de devidamente esclarecido aperta o botão no andar, que os desconhecidos lhe solicitaram. Joe suspira. Mais uma subida, mais uma viagem. O carrossel dos seus sonhos em vertical. O número um dera-lhe a possibilidade de viajar na imaginação das subidas e descidas. As suas viagens, embora breves, eram sempre ricas em indução nas figuras que o pululavam. Joe conhecia bem, o pulsar daquele edifício, e muito das vidas dos seus personagens. Havia trinta anos que fazia viagens na vertical. Recorda o ano em que Mrs Trevor teve os seus trigémeos. Ocupava-lhe dois terços do espaço dado a sua expansão física. Por essa altura tivera que fazer mais subidas e descidas. Depois finalmente os três Bês nasceram. Bruce, Brandon e Barbara. Hoje têm vinte e dois anos! Como o tempo passou. Recorda o ainda jovem Mr. Sutton, Steve de nome, quando entrou na firma. Hoje director e sócio. Trinta anos Uma vida, a sua. Ali, no “Rox Building” viu as estações sucederam-se ao ritmo das suas viagens. Ora mais movimentadas ora mais lentas. O décimo andar era sem dúvida, a zona por excelência de paragem. Muitas vezes subiu até lá apenas para aspirar o cheiro da elegância bem como dos passos deslizantes daquele pequeno mundo: Owens, Sutton & Partners Consultores. O número um sempre se portara á altura dos seus utentes. Elegante, discreto e oleado. Não fizera birras, deslizara ora cima ora baixo ao som das necessidades pontuais das suas personagens. O velho Joe tinha orgulho dele, da sua subtileza, da elegância, da fiabilidade, da generosidade e do mundo que lhe dera no seu abrir e fechar de portas. Ele, Joe, filho do Mississípi, de gentes pobres e numerosas, imigrara para a cidade, quando na década de vinte a fome apertara de tal forma, que a sarabanda fora total. Ele e os irmãos tinham vindo para a Grande Maçã. Os anos encontraram-no em trabalhos de ocasião. E fora de degrau em degrau que chegara até ao Rox Building. Porteiro. Uma posição. Aprendera muito. Não fora só escolaridade, fora mundo. E isso não se frequenta, adquire-se. Sabia avaliar as pessoas. Aprendera a ser humilde sem ser subserviente. A gente, deste meio, detesta o servilismo sistémico, desprezam-no, podem sorrir ao inclinar constante, ao assentir repetido, mas no virar de costas existe aquele sentimento de quase desprezo ou então de sentido superior. Joe sabia, que entre os poderosos não se pode ser fraco, porque motiva o desprezo, não se deve ser altivo, porque irrita a pele e os sentidos de quem está ao lado. Aprendeu, pressentiu e evitou o excesso de aquiescência, ficando-se sempre pelo seu incontornável sorriso, um sofisma por decifrar. Manteve a sua postura erecta como se fora, o fio-de-prumo, porém sobe sempre revesti-lo de uma afectuosidade envolvente. Todos apreciavam Joe Bellow. Havia uma familiaridade dos anos, uma espécie de corrente de entendimento. Os pequenos favores que lhes pediam eram satisfeitos com sabedoria e contenção. Nem mais nem menos. O ponto exacto de viragem entre o pedir, fazer e agradecer. Um tratado de bem viver, era assim que se podia ser definido Joe Bellow, o ascensorista. Uma época que cessa hoje. A idade encheu-se dos anos, as memórias saturaram o presente, os ritmos tornaram-se contínuos, os espaços estreitaram-se e os costumes tomaram aspecto de aguarelas. Um outro século que surge vibrante na dobra da mudança incógnita. O que era já não é, o que for, poderá, talvez vir a ser. Visualiza, em seu lugar, um porto-riquenho de cabelo oleado e de estatura mais baixa, menos contido, usando um tom familiar e nada circunspecto, pelo contrário, quase de igual para igual, que irá abrir a porta e carregar nos botões. Haverá um franzir de sobrolho, um pigarrear, um ah, hum e depois… depois… tudo subirá e descerá no rolar afinado dos cabos mais das alavancas. Tal como a vida.
Joe sai. Não olha para trás. Já recorda. O ontem e o hoje já foram. Amanhã recomeça a subida do outro tempo que lhe resta.

Assinado por: Mateso

quarta-feira, 30 de julho de 2008

DÉCIMO ANDAR: MINUCHA R M, OPUS 2


CONVERSAS DE VIZINHOS
O prédio ia ser deitado abaixo e ela ia fazer pela última vez aquela viagem de elevador que a levaria até ao 5º andar, onde se ia despedir das paredes que a tinham visto crescer.
Chamou o elevador, e enquanto chegava viu-se com dez anos a subi-lo pela primeira vez. Prédio de grandes familias, menos o 4º onde se tinha acabado de nascer o primeiro filho do casal, o Tiago bébé lindo, cuja beleza sempre o acompanhou.
Como era ainda lento, sem nunca mais o terem modernizado. Os vizinhos eram amigos dos pais, a quem tratava por tios.
Finalmente entra, lembrando-se como era desengraçada em plena adolescência.
Tinha-se transformado por volta dos dezoito anos, corpo bem feito, as minissaias mostrando as pernas perfeitas, foi quando namorou o João, filho mais velho dos do primeiro andar.
O Tiago com oito lindos anos, já para ela olhava, e sempre que o via, ela ternurenta dizia
- Olá Tiago, és o vizinho mais lindo deste prédio
Os do segundo andar, sempre snobs, mal davam os bons dias, os filhos, porque os pais eram sempre simpáticos.
Desde os dezassete anos que quando junta fazia a viagem com o "Tio"do terceiro, ele lhe beliscava o rabo, e lhe dizia – Maria Antónia estás-te a transformar, qualquer dia pões a cabeça doida a qualquer homem – ela ria, para disfarçar o mal estar, que o amigo do pai, homem bem bonito, lhe provocava. Ao dezanove, agarrou-a pela cintura e roubou-lhe un beijo, enquanto ela lhe tentava fugir naquele apertado espaço, rindo-se ele da sua atrapalhação. Nunca mais com ele subiu
- Olá Tiago, és o vizinho mais lindo deste prédio...ele com dez anos corou e pôs os olhos no chão. Ela admirada, com uma mão levantou-lhe acabeça, olhou-o nos olhos e percebeu a paixão, então com infinita ternura deu-lhe um beijo na face, que o corou mais ainda.
Ainda vai a passar o terceiro andar e já só de se lembrar fica mal disposta, com a investida do pai do Tiago, que num acesso de loucura, tinha ela vinte e dois anos, mal fecharam as portas no rés-do-chão, a encosta à parede desapertando-lhe a blusa, enquanto ela se contorce e ele arquejante lhe diz ao ouvido, que assim ainda mais a deseja, mas que tem de lhe dar uma lição para não andar a provocá-lo com aquelas saias, enquanto a beija no peito já despido e as suas mãos percorrem o seu corpo. Já o elevador está parado no quarto andar e ele só larga a sua presa, quando ouve a voz da mulher à porta a perguntar-lhe o que se passa. Fica caída no chão, lágrimas a correrem-lhe pela cara, enquanto o ouve, respondendo à mulher, que estava a dar uma lição de moral à Maria Antónia. O pavor que a partir daquela altura tinha de no elevador entrar, fê-la muitas vezes subir a escada até ao quinto andar.
- Olá Tiago, continuas o mais lindo vizinho deste prédio...olá Maria Antónia....ele já com dezassete anos, ela casada, o mesmo olhar apaixonado...então ela com ternura, roça-lhe a boca num beijo leve
Já está no quinto andar e não sai logo, porque ainda se lembra da última vez que viu o Tiago já homem, mais bonito do que se lembrava, ela com quartenta cinco, sem se reconhecerem
Maria Antónia? Pergunta e ela com alegria – Tiago! Continuas lindo. No seu olhar já não existe paixão...e ela diz-lhe na brincadeira – Vês o que fazem os anos? E ele numa ternura, roça-lhe a boca num beijo leve, enquanto lhe diz – A Maria Antónia será sempre a mais linda e terna mulher que me marcou.

Assina: Minucha Raposo de Magalhães


terça-feira, 29 de julho de 2008

NONO ANDAR: EUFRÁZIO FILIPE



O ELEVADOR

- Por aqui?

- Sim senhora ministra.

- Não brinque. Sabe que fui remodelada.

O hotel não tinha muitas estrelas, mas permitia alojamentos para cães e estava como eu gosto, debruçado sobre o oceano, encavalitado numa rocha colossal. Um verdadeiro atentado.

- Aqui não tenho problemas por uns dias.

- Eu já conhecia este espaço. Como preciso do mar desgrenhado, de preferência com temporal e muitos relâmpagos, por cá estive um inverno.

- Interessante, eu gosto deste sítio quando o mar parece sopa.

- O Dique o que mais aprecia neste hotel é o elevador.

- Curioso, a Lassie também.

O hotel - talvez por se localizar num espaço ermo e caro, obedecia a todas as regras de segurança.
Na verdade até o magnífico elevador tinha um vigilante em cada apeadeiro. No r/c situavam-se os alojamentos para os animais. Os andares estavam reservados para os donos. Encrostadas na rocha espelhavam as piscinas de água salgada que o Dique nunca utilizou por ser um Serra da Estrela.

- Admito que a senhora ministra adore animais.

- Por favor, trate-me por tu.

- Com certeza.

- Após a minha remodelação, vivo com a Lassie. É a minha confidente.

De facto a cadela, um belo exemplar, exibia dois explícitos olhos meigos, pêlo farto aloirado, uma madeixa branca no focinho, ancas bem desenhadas, tetinas hirtas, cauda proeminente enrolada.

Uma senhora.

O Dique não dizia nada, mas só um cego não via o carinho com que a coçava nas orelhas e lhe lambia os olhos.

- Dique - deixa a Lassie.

- Por favor não reprima os animais.

Estávamos no bar da piscina. O calor apertava e o mar parecia sopa. Chamei o empregado.

- Para mim um Kutty Sark, para o Dique uma água das pedras.

- Para mim um rosé gelado, para a Lassie uma Coca-Cola.

O hotel - por estranho que pareça, facultava na mudança de turno dos vigilantes, uma oportunidade para os cães subirem e descerem no elevador. O Dique desde a primeira vez, adorava estas viagens e foi a pensar nele que sugeri para o turno da meia-noite uma viagem com o Dique e a Lassie.

- Por mim tudo bem.

Assim aconteceu. A senhora, no último andar, carregava no botão e o elevador subia. Eu no r/c carregava no botão e o elevador descia.

Esgotado o tempo e a paciência, regressámos aos aposentos. Os cães - cada um para os seus. Eu -

convidado, fiquei no último andar.

Uma suite espectacular, ampla, arejada, bem decorada, com tudo o que não fazia falta, excepto o espelho que forrava o tecto, mesmo por cima da cama. Coisa linda.

- Considere que apesar de tudo ainda sou uma figura pública.

- Conhece o "jardineiro do convento", De Giovanni Boccaccio?

- Sim - era um surdo-mudo, mas não de nascença.

Ali ficámos a ouvir a ondulação do mar, até adormecermos no espelho.

No dia seguinte, regressado à preia-mar, ainda a madrugar na lua-cheia, trazia um sinal de outras marés, de outros ventos, quando alarmada mas feliz, a correr para mim, a senhora ministra.

- Tenho uma grande novidade.

- O governo demitiu-se?

- Não, a Lassie está grávida.

- Não me diga.

- Eu conheço a minha cadela.

- Foi no elevador.


Eufrázio Filipe
29 de Julho de 2008

sábado, 26 de julho de 2008

OITAVO ANDAR: MINUCHA R M

DOIS IRMÃOS
Para eles o elevador antigo, era sempre uma aventura.
Por ele fugiam, porta de lagarta aberta, antes de chegarem ao seu interior, tinham de abrir as duas portas de vidro, elegantemente trabalhadas em gravação a fosco, fugiam de quem não lhes queria bem.
Por ele entravam, no que eles chamavam calabouço, embora nunca tivessem estado presos, presos ficavam os seus sonhos desfeitos mal entrassem em casa.
Saiam no elevador, contentes assobiando, sabendo já que haveria represálias, mas mesmo assim a aventura chamava por eles, porta fora chegavam ao exterior.
Entravam nele, cabeças baixas, pensando já no que lhes iria acontecer, pensativos perguntando-se um ao outro se valeria apena subir.
Tão novos, tantos sonhos já desfeitos e desciam, subiam, subiam e desciam, assim passavam a vida.
Lembrava-se disto tudo, enquanto o elevador ia subindo, aos anos que não fazia esta viagem de elevador, o irmão já morto... espreitando o primeiro andar que continuava igual, entrando por ele adentro a sensação que nunca tinham percebido o movimento do elevador, os seus arranques as suas hesitações, que se podiam comparar à sua vida.
Segundo andar, já bem modificado, visto ser de escritórios, porta da rua escancarada para todos poderem entrar.
Quando desciam no elevador, era como descessem ao melhor que deles tinham, a alegria, os sonhos, a magia da vida, que bastava uma gargalhada para toda ser diferente. Quando subiam nele, entravam no pior que neles havia, a violência que os marcara para o resto da vida, o desamor que se refletiria, também, na vida do dia-a-dia, as raivas e os medos
Já ia no terceiro andar, tremeu só de pensar que estava a chegar ao pior que tinha havido nele, ao pior que havia na sua vida, o irmão já morto....
Resolveu, no pouco tempo de permeio entre o terceiro e o quarto andar, que desta não seria apanhado desprevenido, não se deixaria ir abaixo, far-lhe-ia frente, se queria mudar.
Quarto andar, o fatídico, ainda hesitou dentro, mas de rompante abriu de par em par as duas portas de vidro, elegantemente trabalhadas em gravação a fosco, abriu ainda com mais energia a porta de lagarta e quando já tinha saído e se preparava para as portas fechar, ouviu um risinho de desprezo que dizia:
- então ainda estás vivo? Não te suicidaste como o teu irmão? Sempre disse que eras um cobarde! Como te atreves ainda a subir nesse elevador
e num repente, esqueceu-se de todas as boas intenções, pôs um pé na rede que separava o corrimão da escada, do fosso e de um salto deixou-se cair, como tinha feito o irmão ainda adolescente.
Assina: Minucha Raposo de Magalhães
http://claras-o-contestatario.blogspot.com/

sexta-feira, 25 de julho de 2008

SÉTIMO ANDAR: CRISTINA SOARES

O seu nome é Vairaumati

Ela entra no elevador. Tem pressa. Fecha o gradeamento com um gesto seco. Carrega no sétimo. Ele entra no prédio. Já não vai a tempo. Dá um passo atrás. Lança-se para as escadas. Ela encosta-se ao espelho. Suspira e os olhos rolam para o desenho feito de vidros do tecto. Um rosto de contornos incompletos pelo passar do tempo. Em volta uma ramagem de flores. Parecem flores de hibisco. Semicerra os olhos. E o sol de quando tinha quinze anos escorre-lhe na pele. Uma mão que lhe afaga os cabelos. Coloca-lhe uma flor. Vermelha. Pareces um quadro de Gauguin. Sente o sorriso rasgar-se nos olhos. Ele galga os degraus de dois em dois. O elevador passa por ele. Ruído surdo dos cabos. As escadas que sobem contornando a caixa do elevador. O som dos passos dele é abafado pelo ruído surdo dos cabos. Primeiro andar. Há uma mulher que varre o patamar. Na penumbra. Sem rosto. Para só para o olhar. Ele não a vê. A mulher cumprimentou-o. Ele não. Segundo andar. Ela volta-se. Olha-se no espelho. Os olhos grandes e negros rasgam a sua imagem. Humedece os lábios. O sabor amargo do café. O rosto esquecido por entre as mãos. O livro aberto na mesa. A brisa da manhã agita-lhe as páginas docemente. Há um homem na mesa do lado. Que a observa. Esse homem tem um pedaço de grafite na mão. Um pequeno caderno na mesa. Ela sente o homem por cima do ombro. Não o vê. A manhã corre mais rápida que o tempo. As pessoas passam devagar. As mãos dele correm rápidas e secas sobre o papel. Terceiro andar. A luz do candeeiro é ténue. As portas são vultos ténues de contorno curvo. O elevador passa por ele de novo. A luz do elevador revela o gradeamento gracioso do corrimão. Por um instante. Ele acelera o passo. Quarto andar. Ela aperta o pequeno livro contra o peito. Suspira. Sente o abraço. A voz que lhe murmura encostada à flor que tem no cabelo. Cheiras como um quadro de Gauguin. O cheiro da pele dele que lhe humedece a boca. Suspira. Quinto andar. Ele respira fundo, com mão crispada no corrimão. O som dos cabos abafa-lhe o respirar pesado. Há um homem que sai. Fecha a porta. Quatro voltas da chave. Ele retoma a subida. O homem que saiu carrega no botão para chamar o elevador. Solta um suspiro irritado. Tem de esperar que desça. Dois degraus de cada vez. Sexto andar. Ela atira o pescoço para trás. Ainda lhe sente os olhos beijando-lhe os contornos. O som ríspido da grafite no papel áspero. Traços e gestos nervosos. O sabor amargo do café. Ela levanta-se impaciente. Ele não vem. Ele esqueceu-se mais uma vez. Corre para casa. O som de passos por cima do ombro. O desapontamento é quente e húmido nos seus olhos grandes. Corre para casa. Ele não veio. O elevador pára. Ela abre a porta de olhos cravados no chão. Pára. Procura as chaves na mala. A luz da clarabóia é quente. Atrás de si, passos apressados. Espere! Ela gira sobre si. O homem do café sorri ofegante. Espere. A mão que segura a chave suspensa no ar. Tenho que de lhe dizer uma coisa. Estende-lhe uma folha pequena. O seu rosto a grafite. Uma flor de hibisco no cabelo. Ela suspende a respiração. A luz da clarabóia inunda os olhos dele. Tinha que lhe dizer isto. Os olhos dele diluem-se nos dela. Tinha que lhe dizer que parece mesmo um quadro de Gauguin.

Cristina Soares
24 de Julho de 2008

quinta-feira, 24 de julho de 2008

SEXTO ANDAR: ÂNGELA MARQUES

Suspensa no Elevador

(Escuro.

Abre-se a luz sobre o palco, desenhando um quadrado de 2x2m.
No chão, está deitada uma mulher que aparenta uns 50 anos, em cima de um casaco e com uma saca de ombro ao seu lado.
Acorda lentamente, espreguiça-se, boceja.)

M - Ahhhhh.... Mais um dia. (Abre o saco e tira uma agenda que abre na página marcada com uma fita e uma caneta.) Ora, 23 de Julho de 2008... Muito bem. Uma eternidade. Bom, toca a levantar.

(Volta a guardar a agenda e a caneta e tira um saco de toilette. Levanta-se, vira-se de costas para o público, como se olhasse para um espelho.) Credo! Esta cara assusta o diabo! As olheiras estão cada vez piores... Farei o meu melhor para disfarçar este mau aspecto. (Começa a espalhar um creme pela cara, depois a base. Pinta os olhos com um lápis preto, põe o rimmel e pinta cuidadosamente os lábios. A sua postura vai sendo cada vez mais solta, sensual. Afaga o seu rosto no espelho, os lábios.)

Hummmm, estou bem melhor assim.
(Sorri.)
Gosto de mim.
(Vira-se para o público, de novo, enquanto guarda tudo na carteira.)
Vocês não gostam? Não, não é de mim que eu falo. Eu pergunto se vocês não gostam de vocês. Cada um de si, é o que quero dizer. Isso é fundamental na vida. Eu, por exemplo, se não gostasse de mim, não me tinha aguentado aqui fechada no elevador até hoje. Estou em Paris, no Quartier Latin, onde vivo há 3 anos com a minha companheira. Somos um casal feliz. Ela é jornalista e escreve. Eu sou actriz. Mas sou intermitente, trabalho a recibos verdes e nada é certo. Faço de tudo. Tanto a Ofélia, como a Cinderela nas festas dos meninos. Na pior das hipóteses ando por aí a fazer de clown à saída do metro e a encher balões junto ao Luxembourg.

(Abre de novo o saco, tira um grande nariz vermelho de palhaço e três bolas de circo. Começa a brincar com elas, atirando-as ao ar.)
Estão a rir-se? Não sei porquê!! Tenho que ocupar o meu tempo e estar sempre em forma, porque quando sair daqui a vida continua. Preciso de ganhar o meu dinheiro. Esse é o segredo da nossa relação perfeita. Eu não quero depender dela em nada. Somos de meios completamente diferentes, amamo-nos e conseguimos partilhar as nossas vidas, porque cada uma é independente da outra. Ora, para mim, pagar metade da renda da casa, da luz, água, compras é muito mais difícil. Tenho que trabalhar o dobro. E a saúde já não é o que era. Mas, verdade seja dita, quando fico doente e não posso ir trabalhar ela não me falta com nada.

(Guarda as bolas e o nariz e tira um MP3 que coloca nos ouvidos para ouvir música. Vai fazendo exercícios de aquecimento e movimenta-se com o corpo, quase dançando.)
É assim o amor. Eu não consigo retribuir, mas felizmente ela nunca adoece. É uma mulher cheia de genica, bonita, elegante. Viaja bastante e convida-me, mas eu nunca a acompanho. Não poderia suportar os custos. Já me divirto imenso quando vamos a casa dos pais dela, na Provença. Recebem-me e aceitam-me muito bem. (Com um sorriso de felicidade) Sabem que a filha é feliz comigo e isso é tudo para os pais...

(As suas feições mudam subitamente. A cara exprime uma dor profunda e os olhos brilham, cobertos de lágrimas que resistem em cair)
Eu não sei quem é o meu pai. A minha mãe era puta, e pôs-me fora de casa aos 10 anos... nunca tive coragem para ir procurá-la. Agora é tarde. E Inês é morta, como se diz. Mas isso é em Portugal.

"Ó meu túmulo e meu tálamo nupcial, ó lar cavado na rocha que me guardarás prisioneira para sempre! Para aí avanço ao encontro dos meus, de que Perséfone recebeu já o maior número entre os mortos; dentre eles restava eu, em muito a mais perversa; a caminho já vou, antes que se tivesse cumprido o destino da minha vida. Espero...."
(Durante a fala de Antígona, a luz vai baixando aos poucos, até apagar em "Espero". Ouve-se a voz off de uma mulher)
Definitivamente este texto está uma merda! A personagem ficou ali encravada no elevador e não sei que lhe fazer. Lixo com isto.
(Ouve-se o barulho de folhas de papel a serem rasgadas.)

FIM

ângela marques
23 de Julho de 2008

terça-feira, 22 de julho de 2008

QUINTO ANDAR: MATESO

Descendo o Tempo.
Entra, puxa a porta de ferro forjado, de folhas hirtas, que ao dobrar se animam em laços de toucado. Encosta-se à parede. Estica o braço, e com o indicador em riste onde a unha vermelha sorri, prime o botão. Rés-do-chão. Um ligeiro solavanco faz deslizar os cabos já cansados de sobe e desce. Ela, figura solitária olha-se no espelho que engalana o cubículo forrado a vermelho de veludo já esgaçado. Devolve com trejeito, o olhar. A boca, carnuda e húmida de polpa carmim, deslaça um sorriso que restitui à imagem. Os caracóis sedosos escapulem-se do petit-chapeau que lhe cobre o lado direito. A minúscula rede enevoa-lhe as pupilas, se percebem aquosas, cor de mar. Figura gentil, coquette.Gira sobre si num trejeito de momice. Depois recosta-se ao veludo da parede. Lento num estrebuchar de idade, o elevador desce no tempo. O chiar monótono alinha-se com as memórias. O tempo vivido aqui e ali. O zurzir dos gritos interiores, prontamente alinhavados em súplicas ou sorrisos de promessas. Foi hoje, lá quarto andar onde vive, mora, se melhor pensar. Lá, onde o seu quotidiano vazio se prende às paredes profusas de cores e penumbras. É no terceiro andar da sua vida, que abre o álbum dos retratos por definir. É por aí, que puxa a porta adereçada e toma a descida. O hoje, já ficou para cima, na caixa escura, onde circula. Agora, começa o ontem, quase fresco de imagens e parábolas de quotidiano. Gerardo, o seu amante, o seu homem de sempre. Viril, canalha e lascivo. A sua sorte, o seu vício e o seu prazer. Ora uma eira de sentidos, ora uma campa de camarço. Não fazia sentido viver sem ele. Mesmo no desventrar do seu corpo, no repúdio do sentir, mesmo quando as entranhas se contraíam em vómitos e o sangue borbulhava de rancor, Gerardo era a seiva do seu Ser. Todo ele. A sua figura morena esquiva, lúbrica, brilhante e autoritária. O seu olhar cruel, profundo, desdenhoso, devasso e amante. Tudo nele tresandava a vida. Amava-o humilhando-se. A sua memória sabia-o, mas a sua carne era um animal esfomeado, necessitava da saciedade tal como o espírito se alimentava da raiva subcutânea fermentada nos poros, e que eclodia naquela dualidade de amor-ódio, trave mestra do seu quotidiano. Os dias do seu terceiro andar. O elevador desce inexorável. Ouvem-se esbatidos, saídos de uma grafonola, a voz gasta de Piaff e”La vie en Rose”. Um calafrio perpassa-a. Sacode-se como que extirpasse algo impalpável todavia objectivo, algo pegajoso e indesejado, a memória da verdade. O elevador desce. Segundo andar. O Pai. O corpo fica convulso. As unhas vermelhas cravam-se na carne. A pele láctea tinge-se de violeta. O seu Estigma. Revê o olhar negro, encovado, roxo, bruto. Aquele hálito de surro que embebedava o próprio ar. Aquelas mãos grandes, suadas que lhe procuravam o corpo nas noites geladas. Era ele, o homem que lhe aquecia a cama, lhe violava o ventre e roubava a alma. Era aquele monte de desejo putrefacto que se servia dela. E a mandava calar quando gritava. Era o caniço que o dominava e nela se satisfazia. Na filha. E fugiu, fugiu da podridão, fugiu da servidão, do ódio, da convulsão. Veio para o mundo. Que mais poderia fazer, se outra coisa, não sabia. A sua sina fora aberta no dia em que o pai dela se servira. Menina ainda. Depois fora o hábito, depois a perícia e agora a arte. Sim, arte, em tudo há arte. As imagens esbatem-se lentas mas fortes. Abalam. O negro, o escuro e o vermelho. Tingem a alma. O elevador continua a sua descida. Está a uma nesga do primeiro. A Mãe? Não se lembra. Fugiu. Sabe que fugiu com outro. As feições? Dizem que ela, Lisete, é-lhe parecida. Talvez.
Primeiro andar. O elevador pára, sacudindo-se como se os cabos mais não aguentassem. No baloiçar, a memória sorri. Um bibe de riscado, uma côdea na mão, umas tranças meias-feitas. De mão estendida procura tocá-la suavemente. A garota volta-se, acena e sorri. Um olhar doce, umas covinhas malandras. Ágil desaparece. Vai numa corrida desengonçada. A escola é mais além. Vê-a sentada, chupando no polegar enquanto pensa. Depois lesta, dedo no ar. A visão desvanece-se. Outro dia, um grupo de ganapos correm pelo campo fora. Vão às papoilas. É Maio. A brisa percorre o ar, e os risos dançam com ele. São cinco, seis, não sete garotos, todos povoando o verde do campo. Mãos e risos ao vento. Um dia feliz. A memória desse dia torna-a rosada. Endireita o corpo, olha-se ao espelho, ajeita a toilette, belisca as faces, compõe a saia, endireita o corpete, mira a ponta da botina e espera pelo rés-do-chão. O pátio, de mármore escuro, está do outro lado. A tarde transmuta-se na noite. Há penumbra amarga. Abre a porta que chia sob o peso das lembranças. As folhas parecem ter murchado ligeiramente. Carecem de uma lufada de memórias frescas e leves. Coloca a malinha no antebraço direito e calça as luvas. Pisa, serena, o patamar. A grande porta da rua está mesmo à sua frente, é só descer os degraus no tempo e calcar as quelhas do desatino.
O elevador fecha as luzes e dá as boas-noites.
Assina: Mateso

QUARTO ANDAR: BRANCO E AZUL

O elevador dá-lhe sempre que pensar. Sempre. Só que hoje, particularmente, dá-lhe mais do que costume. Tinha entrado. Chateada. O percurso de 15 andares incomodava-a quando tinha que fazer a maldita conversa de circunstância. O trânsito, a chuva, o sol, o metro, os autocarros, as férias dos miúdos. Lembra-se sempre, ali, do tempo em que vivia em Lisboa, num prédio de três andares. Sem elevador. É que Lisboa não tem arranha-céus mas tem trânsito. E conversa de circunstância. Naquela terça-feira, felizmente, não entrou ninguém. Que alívio, pensou. Terceiro, quarto, quinto, sexto andar. No sétimo, pim! Pim? Pronto, lá vem alguém.... Bom dia, ai que chove, ui que trânsito, etc. Qual não é o espanto quando a vê entrar. Não queria, não podia acreditar. Era ela. A sua vizinha do lado, do tal prédio de Lisboa, ali no elevador do enorme edifício de escritórios em Nova Iorque. Fizeram uma festa, conversaram e naquele dia, naquele elevador, aquelas vizinhas não fizeram conversa de circunstância. Coisas de elevadores...

sábado, 19 de julho de 2008

TERCEIRO ANDAR: HELDER MAGALHÃES

MEMÓRIAS DE UM ELEVADOR
Em luz de lua cheia, sob noite abafada e calorenta, estava em aposentos usuais aquele elevador, solitário no seu mundo, fechado, vazio, vertical, iluminado por uma força maior, vinda de céus imaculados, botões apetecíveis no seu interior, que pedem incessantemente para lhes pressionarmos com suavidade angelical.
Um, dois, três… e vai subindo e subindo.
Quatro, cinco, seis…
Pára.
De seu interior frio e fracamente acolhedor, luz amarela, vem passageiro de hábito.
Logo, alguém necessita de auxílio e elevador que é elevador não tem mais que obedecer a outra paragem.
Traz em seu regaço ricos e pobres. Novos e velhos. Pais e filhos. E todos saem indiferentes e isentos de compaixão para com o seu trabalho árduo e talento inato para a monotonia.
Que ao menos lhe dessem ponta de conversa, que lhe perguntassem “como vai a vida, Sr. Elevador?”, que lhe peçam a mísera permissão para entrar. Mas ninguém o faz e dele todos abusam, várias vezes ao dia, para cima e para baixo, para baixo e para cima, sob cabos traccionados que puxam até ao limite, que se rompem em si, para satisfazerem as necessidades dos abusadores.
E assim continua a vida de um elevador.
Só.
Silenciado.
Em perpétuo movimento vertical.

Enfermeira recém licenciada, menina de bem que ali havia morado, vem visitar quem lhe deu à luz. Acabada de sair do emprego, ainda com bata branca a dar bem acima do joelho, pernas oferecidas, o sapato preto de salto alto em contraste com cabelo louro preso num apanhado em cabeça de pele clara e olhos azuis.
Espera e entra.
Ainda não estava a meio da viagem ascensorial quando o transporte se deteve para entrada de novos passageiros. A conversa parecia ir já longa entre o casal do 3º Direito que agora ia a entrar. Deparam-se com tamanha brutalidade, a vista a ferir, na enfermeira ali encostada ao fundo, o espelho a reflectir as linhas curvas da sua anca.
“Vai descer?” pergunta o casal quase em uníssono.
“Não, não. Vou subir.” disse-lhes ela.
A mulher aprontava-se em falar, mas o marido precipitou-se, falando mais rápido que a própria esposa, dirigindo palavra a ser tão belo, um anjo talvez, enfermeira de profissão.
“Não tem mal. Nós aproveitamos a boleia até lá acima e depois descemos.”
“Como queira.” respondeu-lhe a enfermeira, deixando-o embriagado a éter pelas palavras dirigidas.
A viagem foi em silêncio. Sob olhares devoradores, de desejo e traição. Outros olhavam de inveja, extasiados de perfeição contida num único ser.
O “plim” emitido anunciava a paragem no andar superior. O toque indesejado por uns e ansiado por outros, gastos de tanto silêncio e timidez que o elevador oferecia. Ninguém se pronunciava durante uma e qualquer viagem. Ficavam ali parados, a olhar, à espera. Pobre elevador, de vida estreita e embutida na verticalidade de um edifício, sem nome, sem jeito, dado a medos e anseios, provido da mudez dos passageiros que ali ficavam à espera de mais alguma coisa além da ascensão.
Sai a enfermeira no andar desejado, olhares postos à sua passagem. Fica no elevador a essência da sua presença, um rasto fino de elegância dum bom perfume e duma suave mesclagem com éter, suficiente para o marido, disfarçadamente, se deixar seduzir.
A porta fecha-se, a ilusão desvanece e a viagem é retomada, em silêncio.
Mais um “plim” que anunciava o final da viagem.
Abre-se a porta. Mais clientes esperavam ansiosamente no piso térreo. Uma criança entre adultos, um ser tão pequeno que fitava a robustez do elevador de baixo para cima. E de baixo para cima este parecia mais severo, mais austero, mais alto, mais vertical, mais silencioso e mais solitário. Intimidava a pequena criança, de pobre inocência, agarrada ao urso de pelúcia e assustava-a no seu intento. Que medos e anseios viriam a consumir tão angélica e frágil criatura à entrada do assustador paralelepípedo ascendente.
“Boa noite.” disse o casal à saída.
“Olá, boa noite.” respondeu-lhes um dos vizinhos do 4º Direito. “Como têm passado?”.
“Estamos muito bem, obrigada.” Disse a esposa. “E como estás tu, meu pequenote?” continuou a esposa dirigindo-se ao filho dos vizinhos.
A criança não lhe respondeu fechando-se ainda mais na sua timidez. Um elevador repulsivo e uma vizinha arrogante a ajudar nos pesadelos de uma pobre criatura que há pouco veio ao mundo.
“Hoje está com vergonha.” desculpavam-se os pais.
A pouca timidez entre os casais já era de longa data. Ficaram ali, em átrio vazio, de ecos e assombros, embrenhados em conversas de dia-a-dia. Fitavam momentaneamente o elevador, personificação do silêncio, ali parado, à espera de ser usado uma vez mais. Aproveitou a distracção dos adultos e a curiosidade da criança para se dar a entender, para que o esforço lhe fosse reconhecido, para que lhe dessem mais valor, sem solidões, silêncios ou monotonias. Queria a compreensão da sua amargura, da sua simplicidade, da linearidade da sua alma e da sua constituição, a descer e a subir a proveito de outros.
E continuou no seu silêncio, à escuta das conversas que não ouvia no seu interior, conversas tão desejadas, tão ansiadas que demais lhe trariam a vivacidade da alma.
Uma palavra daqui, uma frase de acolá.
Assim escutava, no seu silêncio.
O menino continuava parado. Admirado da imponência, consumido de medos à sua aparição rectangular. Fora a primeira vez que tivera a oportunidade de o observar convenientemente. Do menino para o elevador. Do elevador para o menino.
Distraídos do quotidiano discutido no átrio, fixaram-se mutuamente, o elevador e a criança. Agarrou com mais força no urso de pelúcia, aconchegando-o no seu peito, para que este não tivesse medo do que se lhes deparava.
O elevador ali se manteve. Fixo. Iluminado. À espera de alguém. Ainda à escuta, mas distraído na presença de tão frágil e amedrontada criatura.
O tempo passou.
Continuaram os dois a olharem-se mutuamente, compreendendo-se, de um para o outro, de fronte a fronte. E assim estabeleceram um diálogo no mergulho profundo do silêncio. Sem boca nem ouvidos. Falaram entre si pela alma. Estabeleceram um diálogo de compreensões, ditaram os medos, os gostos, as amarguras, os anseios, as paixões. Ficaram ali indefinidamente, devolvendo olhares que levavam e traziam palavras e sons que mais ninguém ouvia. Só os dois, naquela noite, ouviram-se para sempre.
As azáfamas do dia-a-dia tiveram as horas contadas e o menino preparava-se agora, extasiado de alegria interior, para ser coberto e recolhido no interior de um alter-ego. Um ser que a si se assemelhava, no silêncio, na timidez, na dor e no sofrimento.
A viagem assim continuou. Muda, como sempre fora. Só um “plim” foi audível, já no final, quando a porta se abria, a dar entrada a novos ares, a novos espaços mais amplos, mais acolhedores, menos silenciosos.
A criança saiu.
Levado pela mão, afastado de quem o compreendia verdadeiramente, a olhar para trás, no vislumbre final do interior daquele elevador. A porta a fechar, o diálogo a cessar paralelamente.
Como uma despedida sentida, em adeus intemporal, afastaram-se os dois por forças maiores.
E o silêncio voltou.
Noite após noite.
A subir e a descer. Sempre à espera de diálogos. De outros diálogos. De novos encontros. De novas compreensões.
À espera de ascensões que o iluminassem.
À espera.
Sempre à espera.

E assim continuou a vida de um elevador.
Vazio.
Calado.
Em perpétuo movimento vertical.
Assina: Helder Magalhães

SEGUNDO ANDAR: LAURO ANTÓNIO

A Ana Paula, do Blogue “Fio de Ariane”, escreveu um curioso conto sobre um elevador.
O elevador é um tema excelente para exercitar a escrita e a imaginação.
Eu, e outros bloguistas, pensámos que seria boa ideia abrir o leque de possibilidades
a outros bloguistas: quem quiser escrever um texto (ou esboçar um desenho)
sobre o tema, que o faça que depois poderão ser reunidos
num blogue a criar sob a designação O ELEVADOR.
Cada qual dá livre curso à sua inspiração.
A mim apeteceu-me abrir as hostilidades com esta “Morte no Elevador” que aqui fica. Dedicado à Ana Paula que deu o mote e à Maria Eduarda, que deu a ideia.


MORTE NO ELEVADOR

Há quase vinte anos que andava para cima e para baixo naquele elevador, subindo e descendo para regressar a casa ou partir para qualquer destino, já estivera parado entre andares diversas vezes, já sentira a angústia do espaço fechado, já saíra, escorregando através de frechas abertas entre patamares pelos técnicos salvadores, já estava, por isso, mais ou menos “formado” nesta matéria, mas só agora olhara realmente para a verdadeira constituição física deste elevador, todo revestido a metal, metal cinzento recoberto de uma tinta de cor esverdeada, porta igualmente metálica, da mesma cor, com uma curta abertura a meio, onde tinha sido incrustado um estreito rectângulo, disposto ao alto, de vidro lapidado com uma estrutura de fios de arame no interior, que não permitia que o olhar o atravessasse.
Sentiu-se mal, obviamente quando o elevador estancou de súbito, balouçando ligeiramente. Nunca estudara nada sobre elevadores, mas sabia que estavam suspensos por cabos, movidos por roldanas, conhecia de ver por fora a “casa do motor”, lá em cima, no décimo terceiro andar, ao lado da porta que conduzia ao terraço. A situação não tinha nada de surpreendente, num prédio com mais de cinquenta anos, que raramente entrara em obras, apesar da robustez da sua construção, nos bons velhos tempos em que os construtores civis não roubavam tanto no material e os donos dos prédios faziam questão de erguer obras que os perpetuassem. Hoje nada disso acontecia, os prédios eram o que eram, abanavam as paredes quando se batia com a porta, e ouviam-se claramente os gemidos de prazer ou de dor do outro lado da parede. No sétimo direito todos ouviam e sabiam, palavra por palavra, os arrufos do casal de masoquistas que habitava o sétimo esquerdo, contara-lhe a Sílvia, uma noite. Mas aqui não, as paredes eram robustas, as portas de sólida madeira, os elevadores de aço inoxidável, resistentes a toda a prova. O que teria sido excelente noutras eras, mas que era agora algo inquietante.
A mulher que estava a seu lado olhou para ele, interrogando-se. Com os olhos. Não ousou uma palavra.
Ele respondeu que não havia perigo, que já conhecia de longa prática os usos e costumes do elevador, podia ter sido apenas uma paragem ligeira, tocou nos vários botões mas o elevador não disse nem que sim nem que não, permaneceu não tão ledo quanto seria desejável e muito quedo para o seu gosto.
Havia um botão para fazer ouvir a sirene, e tocou-o.
- “Vai ver que é rápido, o senhor Augusto, o porteiro, não demora a aparecer.”
Esquecera-se que era domingo de Páscoa, o senhor Augusto fora com a mulher a casa do cunhado, nos arredores de Lisboa, e o prédio era predominantemente de escritórios, logo vazios neste dia do ano. Lá para cima havia uns inquilinos velhotes, que estavam ali desde a fundação do imóvel, uns saíram para casa dos filhos, levados como robots obrigados a divertirem-se, outros não iam para lado nenhum, e também não ouviam a sirene do elevador a gritar. Surdos como pedras.
Voltou a tocar no botão de alarme, mas os únicos alarmados eram eles os dois, presos no interior daquele elevador metálico que não os conduzia a lado nenhum. Estavam fechados ali, e sabia-se lá quando alguém os viria libertar de tamanho cativeiro em domingo de Páscoa.
- Não mora aqui?, perguntou ele, e acrescentou: Nunca a vi por aqui.
- Não moro, não. Venho visitar a minha tia-avó que mora no décimo terceiro, num daqueles ateliers, sabe?
- Claro que sei. Você é então família da Dona Felícia? Conheço-a bem, mas não a tenho visto ultimamente.
- Pois, está acamada com um violento ataque de reumático. Já tem mais de setenta anos e não quer sair daqui, diz que “é a sua casa”. Por isso a venho visitar. Mas não sabe de nada, é surpresa.
Queria aparentar um ar despreocupado, mas nada disso transparecia quer da expressão do rosto, quer da agitação do corpo. Estava nervosa. Via-se. Sentia-se.
- Não se pode fazer mais nada?
- Temo que não, disse ele. Esperar que alguém passe nas escadas, ou ouça o pedido de socorro do alarme. Mas não se ouve nada nas escadas, não vale a pena tocar mais. Ninguém nos vai ouvir… Por enquanto.
Ela tinha cerca de trinta e cinco, quarenta anos, vestia de forma discreta, secretária de administração, professora, algo assim… Solteira, sem aliança, talvez divorciada. Bonita? Vistosa, mas atraente. Ele olhava-a de alto a baixo, o cabelo escuro, próximo do preto, o rosto quase sem pinturas, um leve toque de batom nos lábios, uma camisa creme com os botões de cima displicentemente abertos, até se descobrirem os seios, ia jurar que sem soutien, um casaco castanho escuro por cima dos ombros, uma saia rodada da mesma cor, as pernas torneadas e tostadas pelo sol ou por drogas de farmácia, uns bonitos sapatos de saltos altos.
Ela sentiu-se olhada, e perguntou:
- Mora aqui?
- Há quarenta anos, certos. Os meus pais inauguraram o prédio, eu apareci dez anos depois. Vivo aqui desde sempre…
- Com os pais?
- Não, agora sozinho. Os meus pais já morreram. Herdei a casa. Casei, divorciei. Sem filhos. Chamo-me Ernesto…
- A importância de ser Ernesto… e sorriu. Um sorriso bonito, pensou ele, e ela:
- Eu chamo-me Lara…
- O tão conhecido “tema de Lara”… Do “Doutor Jivago”, a minha mãe adorava-o. A conversa levou-os a esquecer o elevador durante uma fracção de minutos, mas a angústia instalara-se. Isto está preto. Não vamos desesperar, o pior que pode acontecer são os nervos, não vamos entrar em histerias, o que é preciso é manter a calma… Levou a mão ao bolso e retirou um maço de tabaco. Ela colocou a mão sobre a mão dele…
- Não pode fumar agora… O que me preocupa mais é o facto deste elevador ser tão pouco ventilado. Só entra ar pelas frestas… Não temos ar respirável por muito tempo…
Ele voltou a colocar o maço no bolso do casaco. Verdade, a falta de ar… Agora que ela falara disso, lembrou-se que era dado a ataques de falta de ar, frequentes, sobretudo nas mudanças de estação, entre a Primavera e o Verão, entre o Outono e Inverno, rinite alérgica, por vezes quase parecia asfixiar, a tosse seca invadia-o, tinha de correr ao centro de enfermagem e levar uma injecção de cortisona, para acalmar, para a garganta perder o inchaço, para o ar circular, para os pulmões se abrirem ao ar limpo… A falta de ar era um problema, realmente. Os médicos diziam-lhe que grande parte do problema era psicológico, era o pavor que desbloqueava a crise aguda, era a ideia da falta de ar que criava a falta de ar…
O ideal seria pensar noutra coisa. Naquela bonita mulher, ali a seu lado. Ele começava a suar. Não se dava bem em lugares fechados. Tirou o casaco (Dá-me licença?”, “Faz favor, está calor!”), dobrou-o e colocou-o a um canto do elevador.
- Esqueci o telemóvel em casa, senão…, disse ele.
- Nunca uso, não preciso, disse Lara.
Silêncio pesado entre ambos.
Ela perguntou então:
- Que faz na vida quando não está fechado num elevador?
- Jornalista, escrevo, sobre a cidade. Pequenas notas sobre o dia a dia na cidade.
- Sobre lisboetas presos em elevadores?
- Também. Se houver uma boa história associada…
- Amanhã “poderia” ter uma boa história para contar sobre esta paragem de elevador…
- Quem sabe. Mas gostaria mesmo de não ter nada para contar sobre esta paragem de elevador entre o terceiro e o quarto …
Ela olhou para ele com um olhar trocista, ou seria provocador?
- Preferia ter chegado ao quarto?
- Muito melhor certamente, respondeu e sorriu. E você que faz na vida quando não vem visitar a tia-avó?
- Hum, não acredita, se eu lhe disser: adivinhação.
- Feiticeira? A bruxa da “Branca de Neve”?
- Chamemos-lhe vidente.
- Estamos salvos então. A que horas chegará o porteiro, ou alguém que nos tire daqui?
- Hummm, não se deve brincar com coisas sérias. Pode dar mau resultado…
- Mas não prevê nada?
- Sim, estou descansada, nada de mau me trará esta paragem. Será uma fracção de tempo onde aparentemente nada acontecerá… Cada um seguirá o seu rumo, o seu destino.
Olhou fixamente Ernesto. Despiu o casaco castanho, que dobrou e colocou sobre o casaco do jornalista. Abriu mais um botão da blusa, e os seios pareciam soltar-se igualmente. A pele era ali clara, leitosa, dir-se-ia macia. Os olhos de Ernesto denunciavam a direcção. Não sei estar assim, à espera, sem nada que fazer… Há sempre tanto que fazer, disse ela, e aproximou-se dele. Ele olhou-a nos olhos, desceu até ao peito, ela aproximou-se mais, ele abraçou-a, ela deixou-se abraçar, ele beijou-a, ela abriu a boca para o deixar entrar, ele desceu a boca pelo pescoço, a língua percorreu os ombros desnudados, a camisa meia caída, os seios libertos, o mamilo na boca, duro, a língua que o rodeia com lassidão, ela a descer as mãos pelos quadris dele, a acariciar as ancas, a virar súbito de percurso e seguir até às virilhas, a mão a agarrar-lhe o sexo, ele a sentir o seu desejo e o desejo dela, ambos num mesmo abraço, a mão dela que sobe até ao cinto, que destramente o abre, que corre o fecho “éclair“, a mão dele que procura a bainha da saia, que levanta até à cintura, para depois descer novamente em busca de um calor húmido mais intenso, por onde abre caminho e penetra, escorregando lentamente para o interior desse poço, onde o desejo os enrola. No chão do elevador, corpos, mãos, sexos, o arfar da paixão que se satisfaz, a sofreguidão dos amantes, as bocas coladas sorvendo-se um ao outro, o ar que se inspira, o ar que falta, a sensação de asfixia que se instala, a necessidade de gritar, de pedir auxilio, socorro, a cabeça que volteia, sem tino, a garganta apertada, o ar que falta, as portas fechadas, as unhas que tentam rasgar superfícies metálicas intransponíveis, os pés a bater desordenados na porta metálica, o silêncio em redor, as unhas a estalarem em sangue, arranhando as paredes esverdeadas, a garganta a sufocar, o ar cada vez mais pesado, já sem o brilho da vida, apenas com o peso da morte.

Ao fim da noite, o senhor Augusto, enfim regressado, percebeu que o elevador estava parado entre o terceiro e o quarto andar. Subiu lentamente a pé até ao terceiro, bateu na metade da porta descoberta e perguntou:
- Está aí alguém?
Ninguém lhe respondeu, mas ele ia jurar que vira vultos estendidos no chão. Desceu a sua casa para ir buscar a chave que permite destravar a porta do elevador, e assim o fez. Descobriu, enroscado no chão, o corpo sem vida de Ernesto, o inquilino do quinto direito. Tinha a roupa em desalinho, o casaco dobrado a um canto, a camisa uma rodilha à volta das costas, as calças abertas, meio descidas, um sapato descalço, os olhos desmesuradamente fora das órbitas, a boca escancarada num esgar que deixou o senhor Augusto impressionado.
No dia seguinte, a Dona Felícia, dobrada sobre o seu reumatismo crónico, perguntou-lhe o que havia acontecido no elevador no domingo de Páscoa. Ele contou-lhe tudo, com requintes de masoquismo nas descrições mais dramáticas e acrescentou que vira sair do elevador uma borboleta de asas negras quando abrira a porta.
- Coitado do senhor Ernesto. Tão novo. E eu que brincava tanto com ele quando o via no elevador. “A importância de ser Ernesto”?
A Dona Felícia fora toda a vida bibliotecária e continuava a gostar muito de Oscar Wilde.

PRIMEIRO ANDAR: ANA PAULA


O ELEVADOR, I
Sem-nome caminhava distraída direita ao elevador. Era uma mulher tranquila e prática. Carregou no botão e aguardou pensando em nada. Talvez na cor das paredes à volta...
Entrou.
Ainda não tinha iluminado o botão do 4º andar quando o homem entrou também atrás dela. Não lhe apetecia falar. Mas a ele sim.

Boa tarde. Ela acenou vagamente com a cabeça. Também vou para o 4º. Ela esboçou um ligeiro sorriso.
Manteve-se em silêncio enquanto o elevador subia devagar. Era um pouco antigo. De repente, um solavanco e depois a imobilidade. Sentiu-se ligeiramente contrariada. Levantou os olhos para encarar o homem. Sempre era seu companheiro neste contratempo.

Repare: eu carreguei no stop mas não fique aborrecida. Quero falar um pouco... consigo. Sem-nome transfigurou-se. O seu rosto contraía-se. Os seus olhos iluminavam-se de fúria. O brincalhão! O atrevido! Não isto não estava a acontecer com ela!

Lamento dizer-lhe mas não tenho nome, por isso, não posso apresentar-me. Enfim... sou só eu, eu mesmo. Ah sim? Não me diga! Pois o meu nome é Sem-nome. Acho que consigo ser mais exótica que o senhor. E agora por favor faça o elevador subir. Tenho certa pressa.

Quero fazer-lhe uma pergunta: alguma vez se interrogou acerca do seu tempo de vida, do que já gastou, do que ainda lhe resta? Francamente, o homem era doido! Gostava de discorrer acerca do sentido da vida no interior de um espaço exíguo como o de um elevador!

Devia descontrair-se Sem-nome. Não quero fazer-lhe mal nenhum. Só quero conversar. Conversar consigo... Ela nem respondeu. Perplexa olhava-o enquanto ele se sentava alegremente no chão, encostando as costas à parede do elevador. Olhando para cima, sorria para ela.
Bom... verá que daqui a pouco já quer sentar-se...

Bruscamente e com alguma violência esticou o braço para o painel dos botões. Confusa queria acertar no 4. Mas a mão dele foi mais rápida e agarrou-lhe o pulso puxando-a para baixo. Ela quase caiu por cima dele mas lá conseguiu desviar-se indo tombar desajeitadamente no chão ao seu lado. Não vale a pena. Eu não a vou deixar tocar em botão nenhum. A seu tempo voltaremos a subir...

Incrédula e já receosa ela manifestou a sua fúria: o senhor é doido mas não terá muito tempo para as suas loucuras não tarda muito alguém vai precisar de usar o elevador e então o seu plano será interrompido! A voz saía-lhe entrecortada a inquietação sufocava-a um pouco. Que pesadelo!

Vamos lá. Diga-me: alguma vez pensou...? No seu tempo? Nunca lhe apeteceu pará-lo? Interrompê-lo? Quer dizer... fazer alguma coisa como eu fiz agora. Parei o seu tempo e a minha intervenção criou um intervalo na sua vida. Bem... também criou na minha é verdade. Mas era isso mesmo que eu queria. Gostava que partilhasse comigo este intervalo esta suspensão. Sabe... houve quem se interessasse pela suspensão do juízo. Mas eu... a mim atrai-me a suspensão do tempo. Queria fazê-la sentir tanta atracção por esta ideia como eu sinto.

Ela respirou fundo tentando acalmar-se. Decidiu manter-se serena. Tentaria convencê-lo a parar com a tal interrupção do tempo da qual ele fazia um assunto tão importante. Enfim... o que vale é que a paciência sempre tinha sido uma das suas qualidades! Fingiu interessar-se pelo tema. Mas era difícil disfarçar o seu sentimento de revolta. A voz traía-a um pouco.

Bom...já que insiste... não nunca pensei muito no meu tempo nem em suspendê-lo. Limito-me a vivê-lo.
Ah... vejo que não está ainda muito interessada. Mas faz um esforço. Isso é bom sinal. Talvez se eu lhe der alguns exemplos de vantagens para uma pequena suspensão do tempo... ainda que provocada artificialmente. Talvez consiga fazê-la ver como pode ser importante.

Ela olhou discretamente para o relógio. Ia jantar tarde hoje. Se jantasse... Decidida virou-se para ele. Fez um ar interessado e dispôs-se a escutá-lo.

Publicada por Ana Paula em Quarta-feira, Junho 11, 2008

O ELEVADOR, II

Então conte-me... que ia fazer a seguir? Jantar? Qual o rumo dos seus passos no dia de hoje? Mas que tem o senhor com isso? Era o que mais faltava dar-lhe contas da minha vida! Bom não se zangue era apenas para a levar a entender... Mas entender o quê? Que há para entender?! Diga-me mas é... o que pretende com todo este absurdo? Absurdo! Disse bem. A voz dele soava triunfante. É exactamente esse o cerne da questão o absurdo de tudo.

Sem-Nome olhava-o cada vez mais arrepiada. Ele começava a fazer-lhe medo pânico e isso tudo que há de aterrorizador. O olhar cravado no seu rosto... a expressão escandalosamente tranquila com a qual a encarava... a voz pausada e matizada por uma diversão interior qualquer... Adivinhando os seus pensamentos o homem agarrou-lhe a mão desta vez suavemente e com firmeza disse: sei o que está a pensar. Não não sabe o senhor é um pretensioso é o que é para não dizer pior de si. Sei sim sei o que imagina. Crê que eu lhe quero fazer mal forçá-la a alguma coisa... enfim... alguma coisa de natureza...isso isso mesmo estou certo de que sabe do que estou a falar. Ela olhava-o o medo comia-lhe a face reparou que os lábios lhe tremiam pensou que toda aquela emoção todo o seu estado de alerta a traía.

Mas ele continuava: ou então em alternativa julga que quero brincar consigo que a quero aprisionar porque tenho índole de carrasco sendo a Sem-Nome a vítima. A propósito agora que o proferi o seu nome é mesmo bonito parece um sinal qualquer que exige ser interpretado... mas isso fica para outra vez. Que outra vez?! Não haverá outra vez nenhuma! Quando resolver ser correcto e dar fim a esta brincadeira de mau gosto... não volto a querer vê-lo pela frente.

Tem que acreditar em mim. Nada do que lhe está a passar pela cabeça tem fundamento não quero fazer-lhe mal algum. Eu sei que pode ser difícil acreditar mas é assim tal e qual. Nunca a forçaria a nada de nada... enfim... Ah, sim, essa está boa. Não me forçaria a nada a não ser a isto a esta paragem forçada do elevador comigo aqui dentro contra-vontade. Muito interessante! Tem razão a isso forcei-a mas só a isso. Porque tem que ser para... Tem que ser?! Tem que ser?! Ela gritava e as suas faces estavam vermelhas de fúria. Espere espere acalme-se e verá que vai valer a pena.

Então decidiu mais uma vez dominar-se e agir de modo sereno escutá-lo a pouco e pouco trazê-lo à razão. Se não queria fazer-lhe mal... se não queria jogos de sedução... bem isso era o mais importante. Tanto mais que não estava nada interessada em aproximações dessa natureza a sua vida decorria no rescaldo de uma história que ainda a magoava. Mas aquele homem começava a tornar-se um mistério. Para lá do receio que lhe inspirava não podia deixar de se sentir intrigada com tudo aquilo que estava a acontecer ali por trás da porta e das paredes de um elevador fora da vista do mundo lá fora um exterior que ela sabia estar em movimento... mas de cuja existência até começava a duvidar. De repente o espaço tinha-se contraído e limitava-se a um pequeno cubículo para lá do qual nada mais parecia existir e fazer sentido. A situação que vivia era tão inesperada e estranha que toda a sua vida começava a esbater-se na sua memória. Sem passado e sem futuro era o instante presente que importava nada mais.

Ele tirou do bolso do casaco um livrinho de apontamentos puxou de uma caneta e escreveu lendo em voz alta: intervalo com Sem-Nome. Totalmente absurdo louco inacreditável. Nunca entenderia nada daquilo a não ser como vivência de loucura. Não se preocupe é só um registo deste momento especial. Muito bem mas passemos ao que importa quer dizer qual afinal o motivo deste... enfim... intervalo? Disse que ia explicar-me fazer-me entender. Pois... pois... é assim isto não é nada fácil mas como lhe disse suspender o tempo pode ser vital. Claro que os segundos os minutos continuam a decorrer mas por outro lado não se não vivermos a par da sua passagem e sim ignorando que tudo está sempre a fugir a correr para a frente de acordo com a seta do tempo.

Realmente é difícil entender sobretudo aceitar. Que o senhor queira deixar de viver por minutos ou horas de acordo com a seta do tempo é uma coisa já de si estranhíssima mas que queira companhia para o fazer e que escolha como local de eleição para o seu ritual este elevador onde o conforto não mora... bom... isso é praticamente inaceitável.

Repare preciso de testemunhas preciso sobretudo da presença de um outro(a) para que a consciência deste estado transitório não seja só minha. Quero ter a certeza quero estar ciente de que não imaginei apenas mas sim que de facto interrompi alguma coisa de concreta. Por exemplo a sua vida. O outro é um espelho nunca pensou nisso? Se o outro é o senhor não quero ver-me nesse espelho. Não quer mas vê-se vê-se verá... E que mais? Ela inquiria-o disfarçando a impaciência. Que mais? Quero partilhar. Sem isso nada tem piada não concorda? Humm... entendo acho que sim. Mas não estava lá muito convencida. No entanto a ideia de partilhar sentia-a importante precisamente porque raro tivera essa preocupação. Algo lhe dizia que nesse ponto estava em falta. Hum hum estou a ver. E porquê este lugar digamos no mínimo insólito? Estamos algo isolados do mundo e do tempo que passa. Assim mais ninguém me chama louco só a Sem-Nome e ninguém lhe chama louca a si quer dizer quando sentir exactamente como eu. Bom bom isto era digno de rir à gargalhada! Agora a louca era ela! Ele presumia que ela sentiria e desejaria o mesmo que ele!

Mas a voz continuava... o elevador está em movimento é perfeito como símbolo do correr do tempo. Ele também tem uma direcção definida para cima ou para baixo. Pará-lo é como parar o tempo. E sei que está a perguntar para quê essa ideia fixa de parar o tempo? Verá que só assim pode considerar tudo de outro ponto de vista e orientar a sua vida no tempo que ainda tem para viver de acordo com a sua verdadeira intenção. Tem a certeza de que queria ir para casa quer dizer suponho que mora aqui melhor tem a certeza de que quer ir para onde ia? Fazer o que ia fazer? É isso que importa saber eu quero saber saber mais saber todos os dias!

Quer dizer que faz isto todos os dias?!! Tenho que ter cuidado consigo realmente! Não claro que não o faço sempre. Só quando preciso de "acordar" do mecanicismo em que se converte a vida. Pois claro estou a perceber tudo perfeitamente. Quer dizer o senhor é um verdadeiro contratempo! Exacto! Pense bem: não há nada que tenha eliminado como opção no seu tempo... alguma coisa que retirou dele e que possa querer modificar? Retroceder se assim o desejar a partir destes instantes aqui dentro... algo que situou fora dos dias que tem vivido e que pretendia continuar a viver...? Alguma coisa que nesta suspensão signifique muito afinal e a faça percorrer tudo de modo diferente numa nova linha temporal e factual paralela...? Temos inúmeras possibilidades sabe?

Que optimista! Por essa ordem de ideias estamos sempre a voltar atrás e nunca seguimos para a frente... Aí é que se engana! Trata-se de escolher. Escolher o que queremos. O tempo pode fluir na direcção que quisermos... Pois sim talvez tenha razão até acho a sua ideia interessante. Mas não sei... O certo é que a sua conversa e isto tudo... bem... estou com uma tremenda dor-de-cabeça. Entende isso? Creio que sem este intervalo criado por si na minha vida ela nunca teria surgido. Teria sido tudo realmente diferente. De repente sinto-me cansada. E absurda! Sobretudo absurda!

Pois eu sei. Escolher é sempre uma terrível e imensa dor-de-cabeça. Já me sucedeu igual. Não se preocu... E enquanto as palavras dele soavam como pancadas secas aos ouvidos de Sem-Nome assim mesmo inesperadamente e de repente o elevador retomou a sua lenta subida! Olhou e confirmou: o 4 estava iluminado! Sentiu-se confusa e lá no íntimo uma leve sensação de tédio e de decepção começou a correr-lhe pelas veias à medida que se levantava enquanto se amparava desajeitadamente na parede do elevador... respirou fundo e o alívio que sentiu provocou-lhe uma ligeira tontura. Sim a pouco e pouco recuperaria o controlo da sua vida.

Finalmente o elevador estacou. No 4º sim precisamente no 4º andar sem mais fugas ao seu destino. Ele estava em silêncio total e ela mal conseguia olhá-lo. Estendeu a mão para empurrar a porta e sair! Sair daquele momento claustrofóbico que tão estranhamente conseguira enfrentar da melhor forma. Mas a porta girou nas dobradiças antes que pudesse empurrá-la e não fora ele que estava atrás dela algo ausente a abri-la. Levantou os olhos rapidamente e encarou o espaço agora livre à sua frente... Estava ali alguém... Sem-Nome não estava à espera disso! Bruscamente deu um salto para trás assustada. Calma! Está tudo bem disse ele. Apresento-lhe a minha mãe.

Recuperou de imediato o sangue-frio. Decidida avançou saindo finalmente daquela involuntária reclusão. À sua frente especada na semi-obscuridade do corredor a mulher sorria com ligeira ironia: Não precisa de dizer nada. Ele prendeu-a no elevador certo?
(ainda não concluído)
Publicada por Ana Paula em Domingo, Junho 15, 2008

O ELEVADOR, III

À medida que caminhava pelo corredor mal iluminado, Sem-Nome sentia-se pairar. Os pés que tocavam o chão pareciam querer tornar-se estranhas asas e a todo o momento ela temia elevar-se dali e levantar voo. A mulher tocava-lhe no braço com a sua mão fria e imponderável. O toque era perceptível. E a pressão era suave mas firme. A pouco e pouco ela ia avançando ao longo do corredor como um autómato. Atrás dela os passos arrastados do homem recordavam-lhe uma inquietante presença.

Aquela que se dizia mãe falava com voz metálica e as palavras demoravam a fazer sentido na sua mente algo atordoada.
A única coisa que posso fazer para desculpar o comportamento do meu filho é oferecer-lhe uma chávena de chá. Quero que aceite. Vai sentir-se melhor depois, verá... Ele não faz mal a ninguém, sabe...? Nunca magoou um único ser vivo. Pelo menos premeditadamente. Estes actos são compulsivos não os controla. Mas todas as pessoas que prende no elevador ficam connosco de uma ou de outra forma. Vejo nisso algo de inexplicável é verdade mas inofensivo.

E todo este palavreado insólito que lhe era audível permanecia no entanto semi-inconsciente no seu espírito. Alguma coisa se passava com ela. Alguma coisa desconhecida perturbante e invasiva.
Tinham chegado a uma zona do corredor mais escura. Uma lâmpada em falta ou fundida talvez... pensou. Olhou para trás e a zona de contraste entre a escuridão e a luz mesmo que fraca pareceu-lhe brutal. Imagens de objectos cortantes dominaram a sua visão interior. De algum modo o corredor parecia mostrar-lhe um corte abrupto e inesperado entre dois mundos. Mas a porta chamou a sua atenção... Uma porta à sua frente por trás da escuridão e que se abria deixando passar outra luz. Difusa e azulada. O ténue foco dispersou-se pelas suas roupas e brilhou nos seus olhos que piscaram dolorosamente. A respiração pesada do homem atrás de si despertou-a daquele estado de semi-transe.

Entre disse ele com voz funda e pesarosa. Entre disse a mãe firmemente. Sem-Nome tinha de súbito despertado do estado de estupefacção que a tinha remetido para um nível de existência algo imbecil. Não queria entrar. O receio o pânico e o pavor de repente tomaram conta de si. Queria recuar fugir escapar. Voltar atrás voltar à zona de luz no corredor e seguir directa para a sua própria casa. Hesitante tentou voltar-se mas encontrou o corpo pesado do estranho que a empurrou devagar para a frente onde a mãe lhe estendia a mão enquanto sorria ligeiramente. Pressentiu que o sorriso era forçado. Tudo decorria em breves instantes que lhe pareciam já horas tal era a sensação de arrastamento de si presente nestes últimos minutos da sua partilhada existência com aqueles dois inesperados seres. Uma partilha forçada e incompreensível. Que se tornava cada vez mais irremediável. Não tinha como escapar e o seu destino era entrar.

A mulher estava impaciente. E o olhar traduzia cansaço. Um filho homem com aquele vício não devia ser nada fácil pensou rapidamente. Para lá da soleira da porta ela penetrava num refúgio desconhecido. Apesar de tudo sentiu-se curiosa. Percorreu com o olhar os sinais presentes pela casa nas paredes nos móveis nas janelas através das quais não conseguia ver mais do que uma luz azul brilhante metálica coada muito fracamente pelas cortinas que ali pendiam tristemente já gastas vindas de outros tempos. A casa era triste. Essa sensação apoderou-se dela penetrando todos os poros da sua pele. Sentiu-se muito viva enquanto absorvia aquela tristeza alheia.

Oiça. Preciso de... é que... eu só queria falar... falar com alguém... só precisava que alguém me escutasse... que alguém me desse um pouco de atenção... a voz dele atrás de si era um sussurro rouco. Ele estava muito perto. Virou-se para trás e olhou-o nos olhos. Isso é um pedido de desculpas? perguntou. Acho que sim respondeu ele. Mas só vale se o aceitar. Sem-Nome decidiu espontaneamente ser compreensiva. Julgou ficar assim de acordo com a sua íntima natureza. Já nada mais lhe restava entretanto. Por isso disse: Está bem aceito. Está desculpado.

Olhou à volta em busca da mulher a estranha mãe. Estava parada ao fundo da sala junto à janela. Caminhou na sua direcção olhando para um lado e para o outro. Foi então que o seu coração disparou e quase perdeu o equilíbrio cambaleando. Mas o homem que seguia atrás dela amparou-a enquanto ela siderada fixava o olhar no lado esquerdo da sala. Em cadeiras de espaldar alto ou em banquetas espalhadas ao acaso pelo compartimento brilhavam diversos pares de olhos humanos pertencentes a gente ali sentada gente que lhe era estranha pessoas imprevistas e desconhecidas. Todos esses olhares se fixavam nela. Uns indiferentes outros divertidos e até uma rapariga muito nova que parecia triste se levantou para a receber. Uma mesa mostrava um enorme bule. O aroma do chá penetrava no ar denso que envolvia o lugar.

Uma voz soou electrizante ficando a carregar a atmosfera. Segura bem nela filho. Vá... digam... Digam-lhe lá... a verdade. Ela sentiu-se absurda e irrelevante ao reparar que todos tinham uma chávena de chá na mão que equilibravam cuidadosamente como objecto frágil precioso e imprescindível. Muito aprumados todos foram falando:
Bem-vinda... Bem-vinda... Bem-vinda... Até que alguém acrescentou: Bem-vinda... à eternidade. Ao espaço fechado. Ao tempo parado. Onde tudo permanece imóvel. Onde nada acontece. Onde se entra e onde se está. De onde não se sai. Estamos aqui fechados. Agora... consigo. Sente-se...

Lutadora Sem-Nome parou de tremer. É que uma chávena de chá já estava à sua espera.
(Fim)

Publicada por Ana Paula em Quinta-feira, Julho 17, 2008