terça-feira, 23 de setembro de 2008

VIGÉSIMO QUARTO ANDAR: INTRUSO


Naquele prédio perto da esquina, aquele pintado de azul que tem uma drogaria antiga com montra para a rua e letreiro luminoso, onde no 1º esquerdo vive uma porteira cega com mais de uma dezena da gatos... naquele que tem uma porta muito alta, ali mesmo... há um elevador.
Nada tem de extraordinário o facto do prédio ter um elevador.
Nada teria de extraordinário esta minha história não fosse aquele dia em que nele entrei.

Um dia de chuva. Dessa que “chove mas não molha”.
Um prédio não muito diferente dos outros, numa rua não longe de casa, onde provavelmente já passei, sem nunca ter reparado naquela montra com ferragens, tintas, lâmpadas, ratoeiras e plásticos, sem nunca me ter detido no olhar branco e vazio da D. Delfina (agora sei o seu nome) atrás do estore entreaberto da sua janela, sem sequer ter atentado, uma vez que fosse, na grande porta de cor cinzenta com o número onze.
(Em dias assim eu escolhia ruas perto de casa, que isto de vender enciclopédias é uma tarefa árdua, para mais quando chove.)
Ao fim da manhã e sem nenhum compêndio vendido ou apalavrado, dobrei aquela esquina e entrei no número onze. Subi o primeiro lanço de escadas e ouvi miar atrás de uma das portas do primeiro piso; premi o botão verde para chamar o elevador, que desceu prontamente.
Entrei no elevador e carreguei para o 6º andar (começava sempre pelos andares mais altos e ia descendo depois pelas escadas, conversando com os moradores que faziam o obséquio de me abrir a porta). O “6” iluminou-se e o elevador começou a subir.
Nesse preciso instante ouvi uma voz (que me parecia a minha):
Naquele prédio perto da esquina há um elevador.
Nada tem de extraordinário o facto do prédio ter um elevador.
Nada teria de extraordinário, não fosse aquele dia em que nele entrei.
O “6” apagou-se, e de novo a mesma voz (era realmente a minha):
No prédio perto da esquina há um elevador.
O elevador não é apenas um elevador, é uma forma de escapar ao tempo.
No elevador há um corpo, no lugar onde eu estava.
O corpo não é apenas um corpo. O corpo é um elevador que cai.
A queda é uma viagem do corpo, imóvel, ao fundo da cidade que não se vê. A queda é uma deslocação interminável para cima. A queda é um movimento parado e profundo. A queda é uma fuga vertical.

Corri a velha porta de grades e saí para o patamar (com uma estranha sensação de... leveza).



Naquele prédio, ali mesmo, há um elevador.
[Nada teria de extraordinário este facto, não fosse esse elevador o local em que, naquele dia, morri.]


Assina: João Concha, de "Intruso"