sexta-feira, 8 de agosto de 2008

DÉCIMO QUINTO ANDAR: Daniel Sousa

Crime no escuro
Não existem crimes perfeitos. Disse-o mais do que uma vez o senhor Amaral, detective privado, vivia num andar húmido e velho da grande cidade. Quando rapaz adorava andar no elevador, numa outra casa, já desaparecida. Na sua patética imaginação de criança julgava inocentemente que o elevador era um portal para outro mundo. Quando conheceu a realidade, chorou por não ter mais no que acreditar. Quando veio a ter esperanças, chorou por não as ter mais. Os sonhos que tinha vivido, as crenças em que tinha acreditado, tudo desabou. Desacreditou no elevador logo no primeiro dia, entre tantos, em que ficou encurralado no escuro, seria normal o elevador estagnar. Mas não neste dia. O susto serviu para emendar velhas brincadeiras. Em outros tempos representava para ele, a aventura, um novo mundo por conhecer, mas quando esse mundo se tornou trevas, ele também passou a teme-lo. Nesta altura da sua infância começou a desejar ser detective, e tornou-se. Apesar da vida paupérrima que levava, conseguia o suficiente para sobreviver.
Todas as manhãs, sempre que entrava no elevador, encontrava-se com dona Maria, a velha simpática e afável do prédio, puxavam conversa atrás de conversa, até que se despediam, a porta do elevador abria e, apenas no dia seguinte, voltavam à mesma rotina.
O elevador tinha uma fraca luz, que desapareceu passado dias. A única iluminação que possuía eram os botões que guiavam os seus passageiros ao destino escolhido. Desta forma os habitantes do prédio impuseram as suas medidas para uma reforma nos condomínios. Quem não ligava a essas discussões era o senhor Amaral, que voltava a recordar o elevador da sua infância, aquele cubículo escuro e frio, a sua memória voltava atrás no tempo, aos anos em que perdera a fé na própria esperança.
Detective há uns doze anos, o senhor Amaral apenas pensava no que poderia suceder: um crime brutal, a vítima nunca conseguiria notar na cara do assassino, o escuro ocultaria a identidade, e o cadáver permaneceria naquele cubículo, até que uma das pessoas que habitavam o prédio o descobrisse. Seguia pensativo, ele, como detective, tinha uma intuição dedutiva que aprendera lendo os clássicos policiais, mas, com o tempo, descobriu que o mundo não é como nas histórias. Que treta! Diz-se que não existem crimes perfeitos, quem afirmou tal relutância nunca entrara num elevador completamente escuro, onde ninguém pode ouvir as nossas súplicas, onde ninguém alcança os nossos medos.
Quem andava sempre a protestar era o dr. Queiroz, vizinho do senhor Amaral, ultimamente andava à procura de um livro para oferecer a um amigo, poeta. Os sonetos de Shakespeare foram sugeridos pelo senhor Amaral, era um bom poeta, inglês, e bastante vendido. O suficiente para que gostasse. Poderia ter sugerido Byron, Shelley, tantos e tantos, mas foi o único que lhe ocorreu, e, depois, ele apenas devorava incansavelmente os policiais, isso sim, era literatura, era doentio pelo crime. Mas ultimamente andava deprimido e com períodos de terrível amnésia. Combatera o medo por elevadores frequentando um psicólogo que o acompanhava, ao entrar num elevador escuro, como era o caso daquele prédio, perdia a noção da vida e da morte, da ficção e da realidade, havia quem sugerisse que o detective era louco, mas todos os génios o são! Repelia sempre o elevador, e planeava um possível homicídio. Durante dias era esse o pensamento do senhor Amaral. Até que a senhora Maria aparece morta, assassinada, dentro do cubículo escuro e frio que é o elevador! Levara uma pancada forte na cabeça que lhe provocou a morte. Um livro, segundo disse a polícia, bastante grande e pesado, três cacetadas fortes e a velha foi-se deste mundo! Agora os moradores sabiam que a luz não se apagara por acaso, era o pronuncio de um homicídio, e entre eles, entre todos aqueles moradores, um deles era o assassino.

Ao perguntar se oferecera o livro ao amigo, o detective recebe a resposta directa do dr. Queiroz: o livro desapareceu, caiu-me da mala, ao chegar a casa já não o tinha! Shakespeare é sempre bom, mas desaparecera. No entanto o prédio pouco podia pensar em livros desaparecidos, um homicídio ocorrera, uma inocente, uma mulher virtuosa e bondosa fora encontrada morta, o único detective do prédio teve de actuar, contra todas as vontades da polícia que não se fiava nesses charlatães, espiões de terceira categoria.
Enquanto isso, o senhor Queiroz continuava desiludido pelo desaparecimento de um livro tão belo como aquele, talvez devesse ter optado pela poesia francesa, meditava constrangido. De repente lembrou-se de algo, o senhor Amaral seguia no mesmo elevador quando o livro desaparecera: tudo acontecera porque ele, pouco antes de sair, deixou cair o telemóvel para o andar inferior, e dera a mala ao detective, na mesma mala onde, supostamente, trazia o livro. Bem, mas o senhor Amaral nunca roubaria! Livrou-se da ideia: para quê que um detective, que apenas ama a literatura policia, e despreza por completo a poesia lírica, iria querer roubar a obra de um dos maiores nomes da literatura mundial? Com estes pensamentos abriu a porta do elevador e dirigiu-se a casa.
No dia seguinte o dr. Queiroz foi preso, o livro que fora usado para o homicídio era: Os sonetos de Shakespeare, uma edição recente, num livro grande e pesado, com uma lombada, grossa o suficiente para provocar a morte a uma velha frágil e despreocupada. Ele dissera que o livro tinha desaparecido pois esquecera-se dele no local do crime, e contra todas as circunstâncias pretendia lançar as culpas ao senhor Amaral, detective, agora respeitável. Existia o recibo da compra daquele livro em nome do dr. Queiroz, existiam testemunhas, existia o senhor Amaral!
Ninguém podia acreditar no que ouvia, mas assim era, ninguém é prefeito, todos temos os nossos demónios.
O senhor Amaral voltava a recordar que nenhum crime é perfeito, ninguém sai impune de um homicídio. Voltou a entrar no elevador, seguindo os aplausos dos que lhe agradeciam, e naquele ambiente escuro e triste cometeu suicídio, nunca ninguém percebeu porquê, a não ser quem vira o senhor Amaral entrar no elevador juntamente com a dona Maria, pouco antes do homicídio ocorrer, porque apenas um dos dois saiu da cabine escura e triste que revelava mundos jamais conhecidos dos humanos. A partir desse dia nunca mais se voltou a falar em crime no prédio, que acabou por ser abandonado e demolido.
Assinado: daniel sousa, do blogue "
Crime no escuro"